TERESA CRISTÓFANI BARRETO, Calentura


TERESA CRISTÓFANI BARRETO
(tbarreto@usp.br)

Calentura
Calentura
Calentura
Calentura





e direi bem baixinho:

então, era verdade?

Parece que nunca fez tanto calor. Oscar sabe que todos os anos é a mesma lengalenga, que o calor está insuportável, que não sei como é que eu agüento viver numa terra dessas, o lenço branco já úmido, encardido e embolado, passando toda hora pela testa brilhosa e quase gosmenta de pó, fuligem, uma fração de casca de alpiste ou o que pairar no ar, fios mortos de cabelo, e depois fazer volume no bolso da frente da calça, no lado esquerdo. Mas agora é diferente. Nenhum ar, nenhuma aragem, nenhuma brisa. Se é que é para levar a sério aquela história de Sopro Divino, então a boca de Deus exala um bafo quente e pegajoso. Oscar fica só imaginando de onde é que foram tirar aquela balela dos ares amenos, se bem que não eram exatamente daqui, mas de logo ali adiante. E as águas, então. A tal abundância secou, e os rios de muitas e crescidas águas viraram um fiozinho esquálido, sujo, que se esgueira dificultoso pelos encanamentos enferrujados, só com hora marcada. Nas menos próprias, aliás. Porque já não se pode mais levantar da cama lá pelas nove e meia, dez da manhã e tomar um banhão, refrescante, despertador. Nem fresco, nem estimulante, nem ão, muito menos inho. Nem escovar os dentes, encher a boca com aquela espumona branca, ardida, que quase faz esquecer, enquanto está em contato com mucosa e pele, o calorão. Oscar lembra do tempo em que podia levantar de manhã e sentir congelar a boca com o Ah!... do reclame de pasta de dente. A interjeição agora virou de desânimo. E de nojo, por saber que da torneira não sairá, até a noite, nem um mijinho —que seja— de água.

Levantar mais cedo nem pensar. Então, é mesmo acordar e saber que vai ficar o dia inteiro com o corpo cheirando a morrinha, a língua grossa, o mau hálito que se expande com facilidade pelo ar parado, o cigarro só piorando as coisas, em vez de disfarçá-las. O cabelo grudado no couro cabeludo, a roupa grudada no corpo, braços e rosto sempre pegajosos, o lenção laborioso, com o canto puído e o ponto-ajur desmanchando. Os fiozinhos de linha ou de cabelo pendurados fazendo cócegas no nariz.

Lenço branco que já não ostenta mais o monograma amorosamente bordado pela mãe —de tão esfregado no tanque noturno—, rara tenção estética concebida por alguém daquela casa, sua família. Um pai caminhando celeremente para a cegueira, que ainda se apresenta como técnico agrimensor, mas que nada mais faz do que segurar uma escala para que outro funcionário da companhia de estradas de rodagem realize a leitura de caderneta. E que no escuro mais escuro de cada noite se dedica ao projeto hidráulico de um revolucionário sistema de privadas, cujo grande avanço é uma curvatura diferente do sifão para Oscar não sabe o quê. Uma irmã de cabelo sempre caído sobre o rosto e que divide com a mãe —de má vontade, porque gostaria de trabalhar fora para conhecer alguém e casar, como fez Marina, a outra irmã— a função de professora no arremedo de escola montada na mesa grande da sala. Dão reforço para crianças atrasadas na escola primária. E quando esses três membros da família se encontram, na hora do jantar, sob o olhar áspero de Oscar e alguma criança ainda mais atrasada remanesce na sala, começam então as reclamações de praxe, não se pode nem bá, bá, bá, não estou para sustentar bá, bá, marmota, bá, você não vê que esse aí bá, eu quero um ventilador bá, bá, bá, bá, bá para pagar as contas este bá, bá, bá. De cada boca escorrem fios de palavras, e Oscar os vê amonturando-se como se amonturam essas pessoas, semelhantes às próprias excreções que se congraçam, ao longo do dia, em diferentes nuanças e consistências, mas sempre com o mesmo tom fétido, até a noite redentora que faz soar, em harmonia, as descargas do bairro.

Mas nem mesmo o coro das águas ciclônicas, tragadas por todas as cloacas, amaina o dia. Ou os dias, iguais na impossibilidade de excretar dignamente os sumos corporais. Porque por mais que se tente ficar livre deles, eles refluem com a subida das marés que cercam toda esta terra, troço boiando em águas apodrecidas que vêm e vão dos corpos úmidos e dos ares suarentos.

Mas frio, frio cortante, frio que paralisa, frio de faca de fio de aço, só o frio do fim da espinha quando passa ventando no ônibus sempre de porta aberta para fingir que se refresca um pouco com a poeira quente das ruas do centro o marido de Marina, o chofer sempre de camisa de meia agarrada no peito, o puto bem que gosta de se exibir. Pelo menos Marina escolheu alguém que extravasa a pequenez das coisas práticas que marca a família, com exceção dos parcos bordados de mamãe. Talvez à época do casamento não tenha pesado todas as implicações que essa camisa de fundo poderia trazer aos laços fraternos, fechando por completo os olhos ao exemplo das duas irmãs que tomavam o bonde Desejo e ardiam pelo mesmo motivo e no mesmo forno em que ardemos por aqui. Ou talvez acreditou que certo tom trágico daria alguma dignidade a nossas vidas. O fato é que tem que conviver com o hálito da cerveja sempre fermentada com alheios, o marido esbravejando antes para ela não conseguir dizer nada. E resfolegar toda noite com ele, que antes de começar arranca a camiseta e arreganha os sovacos peludos cheirando acre e aí se coça todo, dando liberdade aos pêlos pretos do peito, achatados desde de manhã e fixados contra a pele com o suor represado de um dia inteiro, os mamilos se retesando com a friagem súbita da falta do pano branco e o contato cortante das unhas sujas e crescidas. O brutamontes apertando as tetas dela com o peitão largo, duro de tanto músculo, parece uma massa compacta de carne, luzidia de tão esticada, e esse homem pesadão largado em cima de tetas tão miúdas, duas verrugas, será que não doem ali debaixo. E a sua coisona indo e vindo e ela tendo de agüentar, coitada, e ainda fazer cara de quem aprecia, senão já viu. E o hálito dele bafando na nuca, nos pêlos arrepiados deixados à mostra graças aos cabelos muito curtos, o calor da boca dele fazendo a carne quente arrepiar, e os mamilos dele roçando nas costas esquálidas de quem come pouco e jamais entrou, senão com outros interesses, em qualquer academia de fisioculturismo com o indefectível nome de Míster Atlas. As coxas dele contra as minhas pernas meio bambas, o joelho me machucando, o ar que falta na fronha sebosa do travesseiro amarfanhado e a dor, mas sobretudo o prazer.

Prazer antes de ejaculado já cuspido junto com palavrões, a baba escorrida entre a barba por fazer e cristalizada a caminho do sovaco, aí infiltrada da catinga que impregnou o travesseiro, fios de cabelo que se soltaram e grudaram no amarelecido da fronha. Pentelhos de naturezas diferentes enroscados, quase impressos no pano, juntados pelas secreções ressequidas e brilhosas, ornados pelos cabelos anelados que se desprendem a cada embate, a cada puxão.

Quando criança eu descobri que os nossos corpos, o de Marina e o meu, eram muito parecidos, tínhamos os mesmos contornos e medidas. Um dia uma prima de mamãe, em uma festa qualquer de família, numa casa onde havia um piano de armário, o som ácido, não o dos pianos da Sociedade Filarmônica, a tal prima pediu a atenção de todos e, com um lenço de cores muito fortes nos ombros, ergueu um brinde, que eu só muitos anos depois vim a saber que era o brinde da “Traviata”. A mulher era gorda, mas seus dedos, extremamente delicados, seguravam com exagerada feminilidade a taça, que ela olhava languidamente enquanto soltava seu vozeirão meloso e sedutor. Fiquei fascinado. Quando cheguei em casa, arrumei um copo de vidro, peguei apenas um arremedo do lenço de cores fortes, a liseuse de Marina, cor-de-rosinha caipira, um forro de cetim ordinário mais caipira ainda —que Marina dobrava e roçava, uma face contra a outra, com o dedão e o indicador, e só assim conseguia dormir—, que serviu direitinho nos meus ombros, e me tranquei no quarto de minha mãe, o único que tinha um espelho de corpo inteiro. Ali reconstruí com os meus, magros e nodosos, os dedos da gorda. Delicadamente ergui o copo de vidro grosso e soltei toda a minha voz como se fosse seu meu tórax. Cantei maravilhosamente, mas meu pai, estranhado com o som que vinha do seu quarto, forçou a porta, que destrancava com facilidade (a chave não dava uma volta inteira na fechadura), estancou e perguntou: Mas o que é que você está fazendo aí? Eu respondi: Tomando ar. Nesse dia eu descobri que meus ombros e peito eram do tamanho dos de minha irmã, descobri o gozo da arte e descobri que algumas vezes teria que me esconder.

Pensei que papai fosse contar o que vira a mamãe e ela, a partir desse dia, porque Marina nem sempre estava disponível para provar os vestidos que mamãe, prestimosa, costurava para ela, me passasse a usar como manequim substituto de minha irmã. Isso jamais aconteceu. Algumas tias minhas usavam filhas e filhos, indistintamente —mas sob os protestos destes e só até a idade em que puderam controlá-los, e ainda sob ameaças de que se alguém mais ficasse sabendo eles se matariam— como manequins de vestidos femininos. Mamãe, não. Arranjou um manequim de madeira (nunca pôde comprar um para ela, experimentava suas próprias roupas no avesso, assim ficava mais fácil pontear o que precisasse ser mexido), que de criança era mais barato e ainda por cima ele iria aumentando à medida que o corpinho de minha irmã encorpasse. Não precisou mexer muito no bonecão que vivia coberto com um pano velho, Marina-sem-cabeça.

Mas o gozo da arte que se descortinou para mim nesse dia teve menos a ver com a música lírica, seus trinados e troadas, a mise-en-scêne, o guarda-roupa. Eu estava mais interessado era em uma expressão que minha mãe usava com freqüência em dias de calorão. Mãe, onde é que você está? Estou aqui fora, menino, tomando ar. Só que a minha frase era já outra. De outra natureza. Senti, em meio ao torpor de porta-e-janela fechadas do quarto onde me escondia e fui fulminantemente desperto pelo meu pai, a cosquinha do frio na barriga que eu provava pela primeira vez e que se chamava criação. Eu criei, sozinho, um novo emprego para a frase de minha mãe, adulterando seu sentido primeiro. Nesse dia — eu descobri que era poeta. Matutei como é que eu tinha feito aquilo e se podia fazer de novo. Disso dependeria toda a minha carreira futura, recém-inaugurada. Nova descoberta. A da ansiedade da criação. Muito bem, eu era poeta. Mas o seria de novo? Ou estaria fadado a depender, como sempre ouvira dizer, dos humores da inspiração? Resolvi que não, em absoluto. Então decretei a mim mesmo que, a partir dali, eu deveria espichar meus ouvidos a todas as expressões familiares, para começar, e depois às usadas na escola, na feira, na rua, pela vizinhança. Se eu tinha conseguido deslocar tão bem uma expressão de uso corrente na minha casa eu poderia repetir a dose, mas para isso eu deveria conhecer outras expressões para, só então, regalá-las com usos novidadeiros. Estava criada ali a minha poética: fazer uma poesia tão da boca como a saliva. Uma poesia que falasse a fala das comadres falantes, a fala das lavadeiras, e que para ser escrita deveria, primeiro, ser dita. Eu escreveria não com as mãos ou, principalmente, com os olhos. Escreveria com os ouvidos. Seria como comer, não como todo mundo, com a boca ou com os olhos, mas com o nariz, como eu fazia quando o aroma vindo das outras casas era tudo o que tínhamos para o jantar. Solenemente peguei um de meus cadernos brochura, o mais grosso, comprado para durar o ano inteiro, virei-o ao contrário, a capa abrindo ao contrário —como seriam contrários os meus usos lingüísticos dali para a frente—, e escrevi com letra maiúscula, na primeira linha da página, aquela que aninha o cabeçalho de cada dia: CADERNO DE APONTAMENTOS DO POETA OSCAR P.LL. Passei com cuidado o dorso de meus dedos nodosos meio fechados em concha sobre a folha, para garantir sua limpidez. Não queria que nenhum fio de cabelo ou quem sabe algum cocô de nariz que minha outra mão, distraída, pudesse ter atirado ali, maculasse o papel e as palavras. Ali começou minha lista de expressões que, só muito depois eu vim a saber, já existiam listadas em dicionários especializados, alguns autoproclamados TESOURO DA FRASEOLOGIA VERNÁCULA. Mas fui, assim mesmo, criando condições para que o poeta tivesse material à sua disposição quando decidisse criar. Escrevia o que ouvia, sem critério. Nas primeiras páginas estavam lançados:

afogar-se num copo d'água;
qual não seria sua surpresa!;
o amor faz milagres;
a honra é a única riqueza dos pobres;
o amor é cego;
ler em minha alma como em um livro aberto;
cada um é o autor de sua própria vida;
a vida não é tão simples como parece;
a ocasião faz o ladrão;
a vida, em geral, não é senão a perda constante de toda soberania;
as falsas crenças levam ao desastre;
ato seguido;
bancar a criança;
derramar sal na mesa dá azar;
conhecer de vista;
se quiseres ser feliz não analises;
como se diz;
se as coisas são começadas, as coisas devem ser terminadas;
os homens desempregados são como leões enjaulados;
esgotar o cálice do prazer;
tem gente para tudo;
unindo a palavra à ação;
buscar água no cesto;
morrer de rir;
no que me diz respeito;
com efeito;
mas a coisa não era tão fácil como parecia;
em suma;
como se diz;
comer barriga;
para o homem comum, o inexplicável aparece sempre sob o aspecto da catástrofe;
discutir com viva paixão;
por um triz;
fazer-se de rogado;

custe o que custar. Não há etcétera, porque minha lista terminou justo aí. Junto com a minha carreira precoce de poeta, porque este poeta não sabia o que fazer com o tesouro da fraseologia que tinha nas mãos.

Levei quatorze anos para saber o que fazer com o tal caderno grosso em formato brochura. Ele me infernizou, durante os últimos quatro meses do ano, quando eu já havia desistido da minha lista —e, portanto, já não o utilizava como o caderno do poeta—, todas as segundas, terças e sextas-feiras, dias das aulas anotadas no cadernão. Aquilo me enfezava, porque era a prova concreta de minha incompetência poética. E ainda por cima tinha que tê-lo sempre sob a vista cuidadosa, arrumando desculpas pela negação do empréstimo de tão comprometedor objeto. Quando a professora tinha que dar visto em alguma lição, eu carregava o caderno até sua mesa segurando-o com as duas mãos brancas de tão apertadas, para não soltá-lo sob hipótese alguma, mesmo que sobreviesse algum tipo de desgraça e eu fosse de cara no chão. Quando o ano terminou e, graças a Deus, não sobraram muitas folhas em branco no caderno, senão eu teria que levá-lo para o ano seguinte, enfurnei-o no fundo de alguma gaveta do meu guarda-roupa, a prova indelével de minhas pretensões infantis.

O máximo que consegui fazer com aquelas expressões anotadas era cismar, à noite, a luz apagada, sobre certas situações. Ficava matutando se mamãe, um parente, qualquer um, à boca pequena —caso a história tivesse sido muito escabrosa e os adultos, como é seu costume, tratassem de referi-la entre os dentes quando houvesse crianças por perto—, ou alguém da minha idade, enfim, quem quer que fosse, já tivesse mencionado alguma morte provocada por excesso de riso. Minha contabilidade não me apontou ninguém. Em todo caso, dali por diante refreei gargalhadas que pudessem terminar em tragédia. Era melhor prevenir. Ou então ficava imaginando como é que algum idiota infeliz poderia se afogar em tão pouca água. Mas isso também não durou muito. Eu teria mais o que fazer em minhas noites escuras e solitárias. Porque um dia —e foi justamente o que me fez parar com essas divagações bestas de menino tonto sozinho à noite— eu descobri outra coisa.

Descobri a masturbação, que ainda não tinha nome nem esperma, só uma sensação esquisita mas boa, muito boa. Aprendi a fazer a minha música melosa depois que vi um tio meu, que eu via pouco, calção apertado na bunda, saliência irregular na frente, as coxas fortes, peludas, os pés bonitos, as unhas aparadinhas rente à carne, era a primeira vez que eu via um homem de pés cuidados, o torso nu, o fio de suor no meio das costas empapando o rego, os músculos enrijecidos, carregando para lá e para cá eu não lembro o quê. Vai ficar aí olhando ou vem ajudar? Nem uma coisa nem outra. Eu comecei a me sentir esquisito, formigava, esquentava, logo esfriava, o coração parecia que ia sair pela boca, achei melhor sumir dali, que eu sabia que aquilo que eu não sabia o que era não era coisa boa. Desapareci da frente do tio, mas com a sua visão me atordoando. Fui procurar abrigo e pela segunda vez descobri que precisava estar escondido para me saber abrigado. Acabei entrando na carvoeira, lugar negro e ainda por cima sem luz, abafado, que só fez piorar minha sensação. Foi na carvoeira que eu percebi, pela primeira vez, que o meu corpo tinha um centro de onde partia uma vibração assustadora, mas que eu não queria que desaparecesse. Não sabia o que fazer com o resto do corpo, pés, pernas, braços e mãos, mais a cabeça, tudo vibrava e convergia para aquele centro. Então dirigi a mão direita para aquele tal centro e ali me deparei, diante da imagem do meu tio, com o meu membrinho pequenininho grotescamente ereto e o toquei, sem saber como, e o segurei, sem saber como, e extraí dele o que só muito depois vim a saber que se chamava prazer e então soltei um gemido que não sabia bem o que era. Daí minhas pernas ficaram bambas, a cabeça ficou bamba, braços e mãos bambos, o meu membrinho pequenininho voltou a ficar pequenininho e a minha barriga, bem embaixo, ficou gozada por um tempo, até que eu fiquei bom de novo e saí da carvoeira. Meu tio me olhou com uma cara esquisita e nunca mais eu parei de pensar nele e na minha sensação na carvoeira. Também nunca mais parei de me masturbar. Esta foi, na verdade, depois da arte, minha segunda grande descoberta de algo que seria definitivo para o resto de minha vida.
A terceira descoberta, em série, seria a percepção da pobreza como condição da qual não poderia sair jamais. Vivíamos como miseráveis e eu, apesar de minha preferência pela frugalidade, sentia mais fome do que me era permitido comer. Foi quando arquitetei o roubo de uma banana obscenamente exposta





Oscar olha o reverso vazio da última folha de um maço de papéis amarelecidos e amarfanhados, que ele achou no fundo da acanhada gaveta de lenços, meias e cuecas, que não são tantas porque secam da noite para o dia. Papéis vagabundos, cobertos de linhas impressas sombreadas todas elas por sua letra miúda, só interrompidas, linhas impressas e letras miúdas, em seu perfeito paralelismo, por outro traço, bem mais fino, retorcido quase como um arabesco, fio de cabelo que inaugura a curva sobre a reta. Oscar apanha o fio de cabelo, joga-o no chão esfregando as pontas dos dedos e termina de amarrotar o papel pautado — antigo costume esse seu, o de pousar suas frases sobre linhas já existentes, perversamente convidativas a que se lhes deite por cima o que nem sempre deveria freqüentar esse leito núbil cheio de promessas insidiosas. Ele se deixou seduzir pelo ritmo cadenciado, sempre oferecido, das linhas libidinosas e cravou nelas uma presumida A Vida Como Ela É, ela mais que nada parte do passado. O papel pautado Oscar encarcerou no tempo pretérito, para não se deixar cair mais em tantas tentações. A novela autobiográfica ele não colocará jamais na pilha das onze obras concluídas, profilaticamente datilografadas e que esperam quietas, sobre o criado-mudo, por alguma mão redentora que lhes dê alento e voz. A novela autobiográfica amarelenta e arrugada voltará para o fundo da gaveta, para fingir que não saiu nunca do aconchego das roupas de baixo ásperas e puídas pelo sabão de sebo. Porque ela veio, assim sem-cerimônia, como quem não quer nada, mais do que lembrar, repisar a Oscar que entre a miséria pretérita e o presente miserável não se permite qualquer nódoa de misericórdia. O sangue purulento que sempre preenchera, dificultoso, suas veias morbosas, recusou a purificação não oferecida pelos tempos atuais. A carne fraca é a mesma, apenas crescida de novas mazelas. A míngua não precisou se atualizar, sempre atuante. Mudaram, no mapa, algumas geografias. Mas Oscar continua a arder lindamente no inferno de sempre e de toda parte.

E, então, como o soldado que guarda a fortaleza no meio de um deserto sem a menor importância estratégica e que não sabe se certo pensamento lhe ocorreu há apenas um ou dois ou dez ou mil dias atrás, já que os dias são irremediavelmente iguais, saber-se condenado a fazer tudo igual todos os dias. Sair da cama e não trocar o short, apenas vestir a camisa de manga cavada e tecido furadinho e deixá-la para fora, porque senão sua ainda mais na cintura. Calçar as sandálias de dedo, sair com a cara amassada e o mau-hálito não disfarçado para comprar um iogurte. O cigarro aceso e depois sentar defronte do papel almaço branco, que Oscar corta cuidadosamente com uma pequena faca sem serra (para não ferir o papel) sempre pousada do lado direito da mesa. Passar com cuidado o dorso dos dedos nodosos meio fechados em concha sobre a folha, para garantir sua limpidez. E garatujar a letra muidinha, ansiosa por dizer o que não sabe que irá dizer. Antes costumava ser uma peça de teatro, alguns contos, às vezes de enfiada; uma alfinetada em quem achava ter o rei na barriga, um que outro romance. Depois, um poema, uma tradução urgente. Espremer-se em cada linha que risca o papel, mar quieto que assusta com seu silêncio. E calar-se de medo. Confrontar-se com o calor do ar parado, o forno que é a sala onde passa a manhã inteira escrevendo, e a brevidade do contato com o iogurte acetinado, branco como o papel e frio como a lâmina da faca. Mas em lugar do refrigério, a estreiteza dos limites que se rasgam apenas o suficiente para conter seu corpo magro e principalmente conter suas palavras.

À tarde jogar canastra e tomar chá em xícaras bicadas, os pires nem sempre combinando, com mulheres velhas e comezinhas da vizinhança. Oscar sempre leva algum que outro regalo para elas; chicletes, quase sempre. Porque assim elas mascam a goma mais do que falam, gralhas fechadas numa sala fedorenta, dois machos pequineses muitas vezes úmidos se roçando, indecentes, nas pernas guardadas sob a mesa, o olho remelento. Certos dias ganem por carinho. A goma incha dentro das bocas obsoletas, entre os poucos dentes decentes e a língua esbranquiçada, elas têm sempre algum problema digestivo, uma afta, que insistem em mostrar a Oscar e então, em vez de palavras, regurgitam arrotos edulcorados pelo tuti-fruti, que hortelã pinica. Oscar tem ainda que agüentar o chlec-chlec de todas as bocas velhas abertas mastigando, sem parar. Mas isso tudo é preferível ao que dizem. Para coroar a reunião, bicos barulhentos chupando de longe o chá quente para não se queimarem. É quando Oscar se despede, onde já se viu tomar chá com um calorão destes, só mesmo gente besta, mas elas se ofendem se ele não provar pelo menos um golinho com uma rodela de limão.

E à noite, não todas, às quartas-feiras, sair da casa fétida onde tiver jogado, ir até a estação com o corpo retesado, comprar o bilhete de segunda classe, esperar pelo trem que nem sempre honra os horários quebrados em dois ou três minutos, nunca horário de trem é hora ou meia-hora ou quarto-de-hora redondos. Chacoalhar por quarenta minutos, o corpo começando a doer, tomar o vento quente na cara, que nem à noite refresca nesta terra, descer do trem, passar pela casa do amigo só para comer uma fruta e apanhá-lo, esse rapazinho que quer ser poeta — talento tem, mas Oscar se irrita quando ele começa a querer explicar o sentido de seus poemas. Então diz ferozmente: Cale-se! O poema deve se explicar por si mesmo. Senão, não presta. O garoto cora, pede perdão ao Mestre, é assim que Oscar é tratado neste outro círculo. Esgueirar-se por algumas quadras poeirentas, as costas muito eretas, até chegar à porta da casa às escuras. Em cena de filme barato, o rapaz bate três ou quatro vezes na porta, Oscar nem se dá ao trabalho de prestar atenção nessas bobagens —ele tem que ironizar o próprio medo— e então, solene, para um cochicho que diz alguma coisa que apenas ele, o discípulo, escuta, responder: Pinga.

É a senha. Só dentro da casa, de uma mulher que também escreve poemas, é que Oscar solta a barriga, contraída dentro de uma camisa de tecido mais grosso, é o inferno, e colocada dentro das calças, ele não viaja de short porque é proibido subir em transporte público com indumentária imprópria. Solta a barriga porque retira de dentro da camisa dentro da calça algumas folhas dobradas de papel almaço branco escritas com letra miudinha. São seus últimos poemas, único gênero literário que lhe resta escrever, porque não ocupa espaço. (As traduções faz para viver, ele não dá a menor importância a esses escritos de terceira categoria que lhe passam para verter para o idioma pátrio.) Basta dobrar as poucas folhas e metê-las dentro da roupa para Oscar poder andar, hirto de medo, com sua mais recente produção literária. Sentar-se diante dos rostos conhecidos, que aumentam de semana para semana, há sempre alguém ainda interessado em poesia que se arrisca a uma reunião não autorizada. Ao entrar faz calarem todas as outras vozes, que reverenciam a sua, fraca, insegura, levemente aguda. Os silêncios aguardam pelos seus poemas, mas antes de lê-los Oscar pede à dona da casa o braseiro de todas as quartas. Não bastassem o calor, todas as respirações sem respiro —portas e janelas fechadas, não só as venezianas, também os vidros— ainda por cima o Mestre traz para o ambiente ferros e carvões em brasa e os coloca atrás de si.

Só então começa. Sua voz sai forte, intensa, vibrante. Lê um poema, lê os poemas de uma página, lê todos os poemas da folha e então dobra-a seguindo a ordem das marcas do papel e pousa-a respeitosamente sobre os ferros. Recomeça a leitura tão logo os poemas anteriores tenham se consumido. O ritual a princípio indignou a platéia, que, afinal, acabou acedendo às condições impostas pelo Mestre. Além do mais, Oscar acha que não teria mesmo leitores para esses poemas, que jamais migrariam deste papel para outro, de sua caligrafia para a letra impressa. Já que serão mesmo destruídos caso saiam de suas mãos, que ao menos o sejam com reverência. (Esta é a versão do rapaz aspirante a poeta e que dizia a senha para que pudessem entrar na casa de Carilda, era este o nome da poeta que cedia a casa. Comenta, sobre o fato de Oscar levar os poemas escondidos dentro da roupa, que “agia como se traficasse drogas”. O rapaz está um homem, exilou-se e hoje ensina literatura em uma grande Universidade. Tem já alguns livros publicados.)
[Notório contra-revolucionário. Aos 25 anos, renegou a Pátria e seus triunfos. Participou da vergonhosa operação do Pôrto de Mariel. Refugiou-se e dedicou-se até sua morte (por grave enfermidade de natureza não apurada) a trair os compatriotas.]

(É a seguinte a versão de Oscar: “Todos estes poemas serão queimados. Mas antes darei a vocês a oportunidade de desfrutá-los e a mim a oportunidade de lê-los. Escreve-se para os outros. Isso é indiscutível. E toda escritura é uma vingança. Não posso ser uma exceção. Escrevo minha vingança e tenho que lê-la, se não a lesse seria como se não tivesse existido. Mas imediatamente depois tenho que queimar o lido. Não posso deixar provas de minha vingança, pois então uma vingança maior cairia sobre mim e me aniquilaria. Conformem-se com a sorte de escutar estes poemas uma só vez como eu me conformo com a minha, ainda mais terrível, de ter que escrevê-los, lê-los uma só vez e depois queimá-los.”)