Idalia Morejón Arnaiz: ARTE ENQUANTO ATO DE RISCO POLÍTICO: DAS KAPITAL, DE CARLOS A. AGUILERA

tomado de Sibila

Carlos Alberto Aguilera en fogonero emergente

“A cerca daquilo que não se pode falar deve-se silenciar”. É com essa sentença que Ludwig Wittgenstein começa e finaliza seu Tractatus logico-philosophicus. Sem dúvida, é a frase mais citada de toda sua obra. Em Das Kapital, o poemário de Carlos A. Aguilera, o aforismo do filósofo vienense transforma-se em vínculo entre poesia e política; ela convoca à reflexão sobre o isolamento, a covardia ou a coragem (que também são maneiras de identificar o limite), de muitos poetas durante as últimas cinco décadas de regime totalitário em Cuba. Por que haveria de ser melhor calar? O que é que não poderia ser dito? Será que as estratégias cifradas que alguns poetas utilizam em Cuba para comunicar e criar uma poesia diferente na forma, não tornam óbvias as máscaras da linguagem e as transformam em máscaras políticas?

Para a poesia, falar e silenciar expressam não só a irredutibilidade dos limites da linguagem, mas também a necessidade de procurar uma fissura que possibilite dar vazão para além desses limites. Para a política, dizer e mostrar expressam igualmente uma outra forma de irredutibilidade: as limitações civis do poeta diante dos limites erguidos pelo poder do Estado. Portanto, esta frase de Wittgenstein, abriga tanto a poesia quanto a política; ambas podem convergir – especialmente para divergir- no território das idéias. Não existe em Cuba um único seguimento do saber que não se encontre influenciado pela filiação ideológica compulsória. Daí a junção de poesia e política; daí também o fato de que Aguilera utilize o aforismo do Tractatus[1] para pensar/ experimentar os limites e seus riscos.

Das Kapital foi escrito em 1993, ganhou o Prêmio Calendário de poesia em Havana em 1996 e foi publicado um ano depois. Em 1995 seu autor já havia escandalizado poetas e críticos da ilha na ocasião do Prêmio David de Poesia, da União de Escritores e Artistas de Cuba, quando recebeu o primeiro prêmio (dividido) por Retrato de A. Hooper y su esposa, livro cuja escritura é, aliás, posterior à Das Kapital. Retrato de A. Hooper y su esposa suscitou constrangimento e mal-estar, inclusive dentro do júri, por premiar um livro que se posicionava insolitamente diante da tradição discursiva que caracterizava a poesia da ilha. Concebido, talvez, como uma prática engenhosa de buscar legitimidade na instituição literária, esse caderno colocava o leitor ante uma dificuldade talvez maior: descobrir que, se levado ao plano horizontal, o extenso poema em que cada um dos versos se encontrava reduzido a ‘grafismos’ deparava a admiradores e detratores com um questionamento ainda mais duvidoso: ¿o breve comentário apócrifo sobre Hooper podia ser considerado propriamente poesia? Era isso a vanguarda cubana? Altera-se a forma original do texto (sua verticalidade), modificando-se substancialmente sua leitura, tanto pela supresão de uma certa dificuldade visual, quanto pela composição do sentido? Trata-se de uma carência evidente de ‘conteúdo’ numa obra que pro(im)põe, a partir da verticalidade gráfica uma dificuldade de leitura? Retrato de A. Hooper não é um texto poético convencional, e sim uma narração que fala sobre um autor apócrifo que escreveu um texto, um pastiche do estilo narrativo de Thomas Bernhard. O poema de Aguilera, que por sua vez alude à escritura de Hooper, é a irrupção inteligente e muito bem articulada de un discurso que nunca teve espaço na literatura cubana, e ao mesmo tempo conseguiu ocupá-lo. Seu poema é, de certo modo, uma reflexão sobre seu próprio discurso que não esconde as fontes de uma poética de base filosófica. O texto absorve o prosaísmo do ensaio das ciências sociais, sugere influências ou leituras que sustentam sua teoria de um registro poético vanguardista, elaborado a partir da ‘carência’ nacional com relação aos ismos.

O título Das Kapital remete, de um lado, à grande bíblia marxiana; de outro, a um conceito da sociologia da cultura implementado por Pierre Bourdieu já na década de 60: o capital de que falava Marx, é também simbólico. E o capital simbólico no poemário de Aguilera estava composto por um outro capital, não marxiano e sim wittgensteiniano, não fincado na tradição poética local, nas fontes francesas e espanholas dessa tradição que desembocaram no barroco e no neobarroco, e sim na tradição da ruptura das vanguardas, especificamente na poesia que parte do Simbolismo, passa pelo Cubismo, pela “Ezrauniversity”, pelo Concretismo e por variadas manifestações performáticas, como os poemas sonoros de John Cage.

Como chegou esse novo capital simbólico, impossível de encontrar nas livrarias, nas bibliotecas públicas ou na grade curricular do ensino universitário em Cuba? Voltando de cursar estudos em Mouscou, Sibéria, Berlim Oriental, Bucarest ou Budapest, alguns jovens intelectuais cubanos conseguiram circular por bibliotecas e livrarias européias melhor abastecidas do que as cubanas. Já em Havana, formaram uma biblioteca semi-clandestina, com um catálogo especializado em obras de Filosofia, História e Sociologia, nunca antes divulgadas em Cuba. Entretanto, o governo e as instituições do Estado continuavam a fingir que a utópica versão leninista do DasKapital marxiano ainda era possível. Daí que essa bibliografia fosse vigiada de perto, pois ela importava métodos de interpretação para as ciências humanas, que fariam com que os jovens intelectuais pensassem no significado e nas consequências do que o governo socialista cubano passou a chamar Período Especial em Tempo de Paz. Foi assim, que Carlos A. Aguilera, recém formado em Letras pela Universidade de Havana, tomou conhecimento da obra de Wittgenstein: lendo quase às escondidas uma dentre as tantas obras que passou silenciosa e velozmente de um leitor a outro, como se fosse uma doutrina secreta. Aguilera não se encontra, pois, entre os leitores que tiraram a citação de algum magazine cultural. Na década de 90, quando ele escreveu esses poemários, formava parte de Diáspora(s), um grupo de poetas que postulou a necessidade de criar fissuras conceituais dentro de um espaço corrompido pela tradição e pela ontologia reacionária dos escritores oficialmente consagrados; dentro de um universo intelectual estilhaçado pela política cultural, mímesis da política do Estado. O objetivo fundamental de Diáspora(s) consistiu em marcar uma diferença a respeito desses lugares comuns: a identidade nacional, o que eles chamaram de “fundamentalismo origenista”, e o cânone de “o cubano” como medida de todas as coisas[2]. Para o poder totalitário, é conveniente que o todo signifique uma coisa só; para Diáspora(s), a significação é uma bifurcação que nega o Poder, já que ele se posiciona como aquele que possui a Palavra.

Embaixo da Advertência que dá início a Das Kapital, Aguilera assina a obra em Calcutá, cidade conhecida, entre outras coisas, pelo nível de pobreza sub-humano em que vive a população. A referência a esse lugar tão distante não é decorrente de uma viagem real, e sim da analogia entre a situação de colapso econômico que viveu Cuba a partir de 1990, cuando o já extinto bloco de países socialistas da Europa do Leste e da União Soviética entravam numa fase de profundas transformações estruturais, e o suporte econômico fornecido à ilha chegava ao fim. Havana virava Calcutá, a mesma Calcultá que era mostrada pela propaganda contra a desigualdade social em outros países do Terceiro Mundo. Qual, então, é o elo entre um texto assinado num lugar que o autor nunca visitou, e o texto em si? A relação metonímica Havana-Calcutá se refere não só ao fato de a nova poesia ter de ocupar um não-lugar, mas também à virada dramática e alucinante da vida em Cuba, numa década marcada pela fome, ao mesmo tempo que o dólar americano era despenalizado e aceito como moeda corrente; isto é, no momento em que acontece a re-capitalização das mentalidades e dos valores morais que durante quase 40 anos nortearam os modelos de vida e de escritura no país. Assim, a citação de Wittgenstein aparece justamente para se opor à tradição, e para assinar o livro, nenhum lugar poderia ser mais apropriado do que Calcultá, um território que mais do que pretender desarticular o nacionalismo telúrico, recusa a institucionalização da poética do grupo Orígenes ocorrida nos anos 90, sendo que, em nome da poesia engajada, durante os primeiros trinta anos da revolução esse grupo de poetas também “vivenciou” a morte civil.

Essa virada na vida sócio-econômica fez com que alguns poetas repensassem as relações Estado-cidadão, escritura-poder, arte-sociedade, vanguarda-tradição, poesia-risco, numa revolução que parecia despencar de vez. O caos econômico, a fome calcutiana, repercutiam na poesia em fome de mudança, em proposta de liberdade para ultrapassar os limites dos discursos poéticos normativos que a política cultural da revolução havia implementado como modelos nacionalistas de escritura.

Nesse contexto, as instituições culturais se esforçavam em manter a rigidez da ordem estabelecida encarcerando poetas e amordaçando consciências. Embora o padrão oficial de escritura e os critérios de avaliação crítica da poesia permanecessem inalteráveis, o ruido inquietante causado por Das Kapital foi rapidamente apaziguado com uma estratégia infalível: premiar em vez de censurar. Premiar um livro para logo em seguida juntá-lo à pilha dos esquecidos, dos medíocres e dos execrados, parecia uma ótima estratégia; porém, significava desconsiderar que a inserção dos jovens escritores no meio intelectual cubano estava ameaçada pelo exílio massivo, pela falta de papel para imprimir livros, e, sobre tudo, pela censura que impedia por todos os meios possíveis que os poetas se posicionassem politicamente diante do desastre que assolava o país.

Como o poemário Das Kapital dialoga com a tradição poética cubana dentro das intrincadas relações de poder entre poesia, crítica literária e política vigentes em Cuba? Precisamente por ser tão dificil, a ausência de diálogo decorrente do silêncio, faz com que a diferença se torne visível. Apesar do prêmio recebido, a recepção do livro foi pobre e teve como interlocutores unicamente alguns dos poetas que estavam preocupados com idênticos temas. Resultava estranho aceitar que Das Kapital pudesse ser considerado poesia, e menos ainda poesia cubana, já que Aguilera nega duas zonas centrais da tradição poética cubana, justamente as que são lidas como documento social ou como telos; e inventa uma outra, libertária e arriscada, quase extravagante naquele ambiente isolado. Nesse sentido, Wittgenstein se torna uma referência importante. Em tanto poeta, Aguilera projeta os escritos do filósofo vienense desde sua própria e original recriação da filosofia lingüística, criando assim um campo de interseção entre o espírito e a ciência, que em Cuba foi destruido pelo discurso nacionalista que ainda continua a olhar para o passado, para a “era do engajamento” dos anos do comunismo soviético.

Das Kapital está composto por cuatro poemas: “TheAter”, “Tipologías (I-II-III-IV)”, “B, Ce-”, e “GlaSS”. Nesse caderno, o autor segue a linhagem mallarmeana iniciada com Un coup de dés, onde pela primeira vez a poesia métrica é substituida por uma composição visual regida por uma prosódia diferente. O poema “GlaSS” é representativo dessa ruptura com a poética tida como “tradicional”. Existe nele, tanto quanto no poema de Mallarmé, um jogo de correspondências sutis entre a tipografia (disposição e formas dos caracteres na página) e a elocução do poema. “GlaSS” é especialmente performático, embora todos os textos estiveram pensados como performance. Em Havana, na Casa do Joven Criador, o poeta chegou a fazer um perfomance con “GlaSS”. A sua representação retomava o tema do fascismo, extremamente arriscado naquele contexto, dadas as implicações decorrentes da conjunctura histórica: enquanto Aguilera escondia a cabeça num saco de papelão, isto é, manifestava o sufoco, a morte, o público escutava em off a leitura gravada do poema. No aspecto performático, a leitura pública de “GlaSS”, além de fazer uma referência direta ao fascismo, aos crematórios, avança a caminho da crítica à desfiguración das idéias e projetos da utopia revolucionária, isto é, à poesia institucionalizada que exclui a legitimidade de qualquer outra prática de escritura. Dos quatro, “B, Ce-”, é o poema que Aguilera continua a ler em público (as vezes), embora seu lado corporal esteja reduzido, hoje, ao uso da voz.

A idéia era utilizar de maneira lúdica uma série de estilos, modos e poéticas que em Cuba apenas tem ressonância literária: a performance, o expressionismo, o biológico, a citação e sua paródia, o frio. Daí que cada poema do livro tenha estruturas e velocidades diferentes. Era um momento em que, de uma perspectiva formal, o poeta se posicionava contra a homogeneidade do livro e pregava sua difração. Cada texto devía conduzir ao leitor por um caminho "mental" distinto. Através desse percurso mental, lógico e filosófico, é que o Tractatus ganha uma identidade poética, quando Aguilera toma pose do aforismo, o recontextualiza e o assina. Isso deu ao livro uma gravidade distinta, o tornou numa espécie de performance para a tradição literária cubana, cujo nacionalismo havia se transformado num álibi para o totalitarismo.

Das Kapital e suas representações e leituras tentam colocar a poesia cubana na tradição central de Ocidente ao modo das vanguardas, algo que em Cuba havia sido oficialmente encerrado com o começo da Revolução. O Estado, as instituições e seus críticos oficiais, engajados na projeção político-social da arte e da literatura, silenciaram a idéia de que perder a tradição da ruptura, implica romper a lógica da tradição, pois é a vanguarda a ruptura que perpetua a tradição. Das Kapital representa o fim do idealismo, o fim das representações que pretendem dar a ilusão de realidade. Assim, defender a poesia e a liberdade de criar de um modo diferente daquele já estabelecido, se torna inseparável da defesa da liberdade do sujeito perante o Estado.

No aspecto formal, Aguilera apura questões de escritura vinculadas à plástica, à poesia visual, conjugando dois princípios: a contigüidade na linguagem das artes plásticas, e a sucessão na escrita, típica da poesia. Aos signos gráficos, ele incorpora tipografias insólitas, ou esquemas e fórmulas inspiradas nas mesmas que Wittgenstein utiliza, para desenvolver sua teoria sobre as proposições lógicas, o solipsismo e as tautologias. Das KapitalTractatus, que as proposições da lógica não passam de meras tautologias. Assim, para o poeta o único modo de operação do pensamento poético é a imaginação, que não conhece limites. aproveita tudo isso sem engajamento estético nem lógico, já que a conclusão final de Wittgenstein, com a qual Aguilera justamente dá início a seu livro, é também a chave para a liberdade de criação, na medida em que resume –e resolve- a preocupação do poeta com os limites da linguagem dentro de uma estrutura de poder totalitária. Aguilera vê, através do

Adentrando mais em sua poética, o poeta se preocupa por descobrir a posição exata da fronteira do que faz sentido do que não o faz, de maneira que seja possível chegar a essa linha de demarcação, e parar. Essa idéia, considerada como um aspecto negativo da filosofia de Wittgenstein, no caso da poesia não tem maior relevância, dado que o poeta não está preocupado em demonstrar a perfeição de uma teoria, e sim a utilidade dessa teoria para combinar livremente elementos, que dentro da poesia cubana, não eram considerados formas de escritura poética legítimas. Uma outra convergência essencial sustenta esta relação entre Das Kapital e o Tractatus: se as doutrinas de Wittgenstein se encontram relacionadas à idéia de que a linguagem tem limites impostos pela estrutura interna, na poética que Das Kapital reivindica, o poema é feito também para mostrar que nossa linguagem determina nossa concepão da realidade, pois é através da linguagem que vemos as coisas. E o que é visto em Das Kapital é uma clara relação de poder entre modelos de escritura fincados na tradição cubana e os modelos experimentais emergentes do século XX. Sua poesia coincide com a filosofia no desejo de transcender o mundo do pensamento e da experiência humanos, “pensar o que não se pode pensar”, até encontrar um ponto qualquer a partir do qual o mundo possa ser observado na sua totalidade. Essas coincidências aparecem claramente em “Tipologias”, ou em “theAter”: a poesia equivale a uma anotação de fatos, tem um lado empírico que conduz também à elaboração de teorias.

No Tractatus demonstra-se que os limites da linguagem não são mais do que os limites do mundo de cada sujeito (Wittgenstein ilustra isto com um gráfico onde mostra que o campo visual não se corresponde com a forma do olho). Para desestabilizar o cânone origenista tanto quanto a norma discursiva da poesia engajada, uma outra idéia decorrente do Tractatus, presente em Das Kapital, é que não existe uma ordem a priori das coisas, uma verdade sintética não transmutável. A centralidade do “eu” filosófico (manifesto na poesia por meio da oposição à tradição), existe unicamente pelo limite na percepção do mundo, pelo sujeito acreditar que “o mundo é o meu mundo”. O modelo de escritura utilizado por Aguilera corrobora a necessidade, dentro da tradição cubana, de se abrir a diversos tipos de enunciados para esclarecê-los; mas, ao mesmo tempo, se o mundo é o próprio limite do sujeito, o que resta é pura tautologia, tautologia vazía, isto é: além das bordas da linguagem o que resta é o silêncio, pois tentar incidir de modo total na tradição é como cair no vazío. “Nada tão cheio e superdimensionado como a tradição poética cubana”, comenta às vezes Aguilera. Para ele, se trata de “algo cheio que na verdade é um grande vazío”. Com relação ao Tractatus, o que conta para o poeta é a conclusão de que, como o que está além dos limites da linguagem não pode ser expressado através da linguagem, então só pode ser exibido, mostrado. Isso é o que ele faz com a simbologia utilizada em Das Kapital: utilizar um conceito formal do objeto que, no final, fala tanto quanto mil palavras barrocas.

Do ponto de vista político, o impacto desse poemário tem a ver com o fato de se tratar de uma escritura que descobre camadas discursivas (ideológicas) que, de tanto serem lidas e expostas até seus limites, transformaram-se num risco para os fundamentos da tradição poética em Cuba. Os riscos aos quais este tipo de poesia se encontra exposto dentro de um sistema de valores regido pelo totalitarismo são mínimos, se comparados com o risco maior que é a vida de muitos poetas que vivem ou viveram sob regimes ditatoriais, onde os recortes nacionalistas controlam a expressão ad absurdum, seja no âmbito da poesia, da cultura ou da vida pública. Depois de arriscar a liberdade, portanto a própria vida, segue um outro risco: o exílio. Em Cuba (que é o lugar a partir do qual esses poemas tem que ser pensados), essa poesia corre o risco de não ser compreendida, por não ter uma “função social”, de não ser reconhecida como continuadora da tradição da ruptura; ela corre o risco de ser excluida da tradição hispânica-cubana, embora seja escrita em espanhol. Diferentemente da poesia engajada que predominou na ilha durante mais de três décadas, Das Kapital representa um tipo de poesia sem nenhuma utilidade para o totalitarismo, porque não serve como propaganda da ditadura. É por isso que premiaram seus livros e a recepção foi nula. E, como acontece sempre com a poesia, o risco de não ter leitores talvez seja ainda mais forte.

Das Kapital desapareceu na fugacidade da conjunctura, mas a poesia cubana, por mais escondida ou dispersa que se encontre neste novo século, ainda preserva a constestação política e a inovação estética. Em qualquer lugar do mundo o poeta confrontará “igrejas”, juris, críticos e leitores avessos aos experimentos, mas se tratando de uma contribuição, essa poesia e esse poeta permanecem. Igualmente, é muito possível que a aparente ilegibilidade desse tipo de poesia dentro de uma tradição que rejeita projetos de escritura experimentais possa ser interpretada somente como máscara política, quando o eixo que sustenta a perdurabilidade dessas experiências vai muito além de uma leitura reduzionista.

Para o próprio Aguilera, Das Kapital é um livro político no sentido deleuziano. Isto é, como política ontológica e anti-tradicional (da literatura cubana), que arrisca tudo na tentativa de se inserir na res publica. “GlaSS” é um ótimo exemplo de poema através do qual ele “lê” Cuba, o espaço Cuba da tradição e da censura; ainda mais: o país Cuba da tradição da censura.

“ - Mas também era um jogo com Tadeusz Kantor, com sua La Clase muerta!!!”: me disse Aguilera recentemente numa conversa telefónica. Na ocasião lhe perguntei: “Você tentou mesmo aplicar o método de análise das proposições factuais? E os diagramas? E a inteligibilidade? Ele me responde:

“- Ufff, faz tanto tempo que não vejo esse livro, nem sequer tenho uma cópia. Quando você fala dos diagramas, você se refere aos ratos? A questão das proposições factuais… não. Era uma piada”.

E com isso, mais uma vez, o poeta arrisca.


Idalia Morejón Arnaiz
São Paulo, abril de 2007